Torta de Morango

- Eu quero esta aqui papai!

- Quer o quê princesa?

- A torta papai, essa torta...

- Qual minha filha? Essa de morango?

- Sim papai eu quero esta aquiiii!!! - Aponta a jovem menina para a torta de morango com chantilli no balcão da padaria. No auge de seus 7 anos de idade nada mais que sua vontade pode ser feita, ainda mais a estar na compania do pai, que no fundo ensaia um belo e sonoro NÃO quando seus lábios consagram um fraco e monossílabo sim.

- Por favor, me dê, ããnnn... me dê uns dois... Será que sua mãe vai querer? - Pensar alto naquele momento não era a melhor opção.

- Mas a torta é para mim! Eu quero a torta e quero agora papai!E vamos embora logo porque eu tô cansada!

- Mas princesa, você não quer que eu...

- PAPAIII, a TORTAAAAA! Dois pedaços e tá ótimo. Peça logo!

- Achei que não fosse lembrar de sua mãe...

- Mas não me lembrei de mamãe, os dois pedaços são para mim mesma, um para comer a tarde e outro para depois do jantar. Mamãe tá bem cheiinha, e vive fazendo dieta, pra quê lembrar dela na sessão de doces? Seria até pecado fazer isso com ela tadinha!

O pai olhava atônito aquela miudeza de gente, que compensava na falta de tamanho seu poder de decisão. "Talvez, essa geração domine o mundo mais cedo que a gente pensa". Melhor guardar o pensamento consigo mesmo...

No carro, de volta pra casa a filha impaciente discute com o pai a demora da viagem.

- Tudo isso por uma torta? Achei que não havia mais vermes em você desde quando gastei uma fortuna com médicos e remédios.

- Eu nunca tive vermes!

- Bem sabe eu e sua mãe as cobras que habitavam dentro da sua barriga... lombriguenta! Você que coma toda esta torta sem dividir com o resto da família que vai ver só o que vai acontecer...

Isso era uma ameaça? Para a filha sim. Mas o que iria acontecer? "Será que eu voltei a ter vermes e terei que tomar aqueles remédios horríveis de novo?" "E se ele me deixar de castigo?" "Esconder os pedaços de torta debaixo da cama e dizer que o Tob comeu tudo seria uma boa opção, afinal de contas nunca ninguém deixou o Tob de castigo, com aquela cara de cachorro pidão, quem conseguia?". Era melhor não arriscar e acompanhar o humor do pai até chegar o destino final da viagem, que para ele era a casa, para a filha, a cozinha, de preferência já com uma bela mordida na torta antes mesmo de descer do carro.

Primeiro o dedinho no chantilli, depois uma mordidinha no morango, e por fim, uma bocada no pedaço de torta.

- Huummm, mas que torta... ãnnn... cof cof... ééé... ééé... éécati! Que torta horrível!

"Pára tudo, por favor eu peço que pare essa história! Eu me recuso a acreditar que depois perder a paciência, aguentar choramingos e reclamações no meu ouvido e quase ser atropelado por um pedaço de gente para a degustação de uma torta, eu vejo a minha pequena sargenta voltar todo a delícia da torta para fora da boca!?". Morango não mais se via, apenas vestígios de que aqueles moídos de doce em cima da mesa fora horas antes um belo e doce pedaço de torta de morango com chantilli. Porque toda aquela aventura em torno de uma guloseima qualquer teria um desfecho assim??? Não seria o óbvio a bela criança saborear o doce e querer repetir a dose enfrentando os pais contrariados?

Sim, seria. Mas a vida não é feita de obviedades. Ela é feita de surpresas, sensações inesperadas, e situações adversas daquelas que imaginamos viver. Talvez essa seja a graça da vida. Saber que a cada dia algo novo vai nos acontecer. Mas isso só percebe e dá valor aquele que tem a sensibilidade de notar que o sol de hoje não é mesmo de ontem, que a flor que brotou hoje de manhã cheira melhor a noite, que o chocolate é mais doce quando se ama algo ou alguém verdadeiramente. A vida é muito mais que viver em função de um único pedaço de torta, é olhar ao seu redor e perceber que a viagem de volta para a casa pode ser perfeita se apreciada a cada pedaço de céu, estrada e árvore que se deixa para trás... No fundo, no fundo, eu sonho com o dia que as tortas de morango terão um doce sabor quando souber dar valor a cada momento que eu viver antes de chegar a hora de apreciá-la.